Este livro, desde o primeiro parágrafo
lido o meu desejo foi seguir, mas a vida obriga a pausas e a primeira leitura
acabou sendo muito fragmentada, porém instigante, empolgante e prazerosa até o
final.
A narrativa flui, envolve e pareceu-me
muito bem construída, além de trazer questões que exigem do leitor. Diria que é
uma mistura de ensaio filosófico e jornalismo entregue com admirável
competência literária. Várias passagens e descrições estão carregadas de lirismo,
ao mesmo tempo que informam, questionam ou causam grande incômodo, o que se
espera aliás de bons textos, aqueles que não se propõem unicamente a oferecer
uma leitura ‘gozosa’ no sentido mais pobre que essa experiência possa ter —
para o leitor que busca tão somente o vazio entretenimento, digo — porém um
texto escrito artisticamente e que impulsiona, provoca o diálogo e o pensamento
— o que se chama arte de narrar, não é mesmo? Bom, há muitos exemplos por todo
o livro, detenho-me a citar o modo sutil (perspicaz) como o autor termina os
capítulos IX e XII. Quando falei em ensaio, fí-lo por ter-me lembrado de uma
declaração de Saramago, certa vez. Ele cogitou a possibilidade de ter sido um
ensaísta frustrado que usava o romance como forma de expressão. Não que seja
esse o caso em A Cidade, apenas compartilho a
idéia a que esta característica deste texto me levou. Ai mago Sará...
saudade.
Interessante o uso que o autor fez do
Web fórum neste livro. Dentre autores contemporâneos que tenho lido, alguns que
costumam criticar pós-modernismos mas não abrem mão da experimentação, ainda
não havia visto o bom uso de um recurso tão à mão quanto comentários soltos
pela Web.
A qualidade narrativa no primeiro
capítulo livrou-me da leve tentação de querer desistir da leitura ao chegar no
segundo capítulo, quando pensei: “Ih, começou a degringolar. Estava bom
demais para ser verdade...” Mas simplesmente não
pude crer que um autor que tão bem se saíra nas primeiras páginas tivesse
perdido a mão, assim, do nada, uma oportunidade ímpar de fisgar o leitor. Segui
a leitura. Sábia decisão.
As peças do enredo vão sendo coladas
pelo planejado uso da repetição, que não aborrece — do que mesmo estamos a
falar? Que história estou contando, percebes? Descrições
e acontecimentos estão bem equilibrados, o que dá uma boa dinâmica ao texto e
faz o leitor desejar o próximo capítulo e o desfecho num crescendo de
excitação. Recordo de um pequeno trecho só, durante a leitura, em que o tédio
ameaçou achegar-se, porém ele não resistiu muito tempo e calado como veio,
quieto se retirou.
O protagonista intriga por duvidar da
própria memória e passar “a vida a tentar contactar pessoas que se haviam
perdido no passado”, tomando mentiras por verdade e verdades como mentira, o
que fazemos todos nós. A exploração do sexo para mim soou como uma tentativa de
tirar de foco as verdadeiras histórias: as torpezas humanas, os crimes do mundo
e da vida, bem como a busca eterna por respostas. Será possível escrever bem
sem uma total entrega? — Faço-me esta pergunta desde o primeiro post que
publiquei.
Talvez alguns leitores recepcionem o
sexo como vulgar, já eu acho que eufemismos e o político-corretismo nada mais
são do que percalços no caminho de quem escreve com autenticidade e paixão.
Figuras, metáforas... punições, a história de um crime, de vários crimes, uma
história dessas de todos nós, universal.
“as
verdades que se desabafam são universais, pelo que a todos tocam, ou a quase
todos, mesmo os que não comentam mas só observam, e lêem, e pensam, era mesmo isto
que eu queria dizer, era mesmo isto que eu estava a sentir, mas discordo, os
amigos são falsos e a Internet só serve para ampliar o jogo do quarto escuro,
não há ninguém que acenda a luz, porque convém, como as cortinas e os
compartimentos que separam os penitentes em confissão e os sacerdotes de Deus,
a santidade do sacramento assim o dita, o sacramento da reconciliação para tudo
o que é irreconciliável.”
E o final é como a vida: algumas coisas se encaixam, outras permanecem
sem explicação mas fascinam e atiçam o desejo de recomeçar e seguir. E é bom
que assim seja, para quem gosta de entrelinhas e persegue os sete mares, pois como bem me disse o texto:
os romanos, sem os gregos, teriam existido jamais. Quem sabe?
Resumo: um texto que me proporcionou uma leitura instigante, empolgante e
prazerosa até o final. Trata-se de um romance para mentes adultas, acostumadas
à arte literária e ao exercício de pensar. É o que eu chamaria de 'ficção
crítico produtiva', um texto para ser lido, relido e degustado, e que bem
retrata velhas e novas angústias, angústias eternas humanas, de todos nós.
Parabéns, Eustaquio. Recomendo e vou reler.
Ficha:
Título: A Cidade dos Sete Mares (Free Edition),
Autor: Victor Eustaquio
Gênero: romance, ficção
Ano: 2012.