É que no trabalho eu
tenho que levantar um portão pesado como o diabo! Dizem que o diabo pesa; se é de
maldade ou são os chifres, disso não sei não. Só sei que há meses eu vinha me
queixando dessa dor mas nada do chefe me liberar. Vim assim mesmo. Me operaram
e acharam um caroço do tamanho de uma moeda de 1 Real; era benigno. Agora que
eu vim ele está zangado, mas tanto faz! Cinco Sextas-Feiras-Santas mais e posso
me aposentar. Se quiser me mandar embora vai ter que pagar caro. Nem seria
pouco pra ele, que eu sei. E eu nunca faltei, nem nunca fiquei doente, essa foi
a primeira vez. Trabalho com montadores, sabe, homens, peões. Por isso meu
marido outro dia me disse que já está em tempo de eu deixar esse trabalho,
antes que ele me embruteça demais. Não lhe dei ouvidos. Aliás, não ouço
ninguém, nem mamãe. Espere aí que vou atender ao telefone. Scherer! Ah, bom
dia! Sim, me operaram ontem e tiraram um caroço do tamanho de... Era mamãe. Já
disse ao meu marido que ele não pode me matar nem dar sumiço, mamãe não passa
um dia sem me ligar e já estava preocupada. É que só ontem à noite me liberaram
o telefone, você sabe. Vi que gosta de
contos. Prestei atenção no que estava lendo ontem quando vieram me visitar. A
que veio à tarde é minha filha. Meu marido e a netinha vieram depois. Uma
graça, não é verdade? Toda noite jogamos cartas após o jantar: buraco, mau-mau,
essas coisas. Ah, telefone outra vez, deixa eu ver quem é. Scherer! Ah, isso
mesmo, ontem me passaram uma faca e tiraram uma moeda de 1 Real. Prata não, de
ouro... Minha companheira de quarto é um anjo, tão boazinha, a qualquer momento
parece que vai voar... Era a minha irmã que mora na Suiça com a família e todos
quiseram falar. Nossa família é bem unida, sabe, na próxima semana é
aniversário de mamãe e virão todos: 90 anos! Espero que até lá eu já tenha tido
alta. Telefone outra vez! Quem será? Scherer! Sim, ainda aqui. Abriram minha
barriga e acharam 1 Real. Se eu havia comido? Não, só um caroço, e benigno,
tudo culpa do portão. É, agora ele vai
ter que contratar mais alguém, muquirana... Colegas de trabalho, todos querem
saber de mim. Sou muito querida, sabe, não sei o que meu chefe fará sem mim nas
próximas semanas. Não fosse aquele portão pesado como o diabo, há meses vinha
sentindo dor, já lhe disse. Ah, quando o médico vier de novo vou perguntar
quando terei alta também; e essa dor que
não passa! – tossiu um pouco – Atingiram minhas cordas vocais com a anestesia
geral, os tubos. Incomoda se eu ligar a TV? Não, essa janela lhe distrai muito.
Não sou de ver TV, prefiro livro, se bem que esse que eu trouxe aí ainda não
tive tempo de pegar pra ler. Ah, e trouxe uma lã nova também, um cachecol que
estou fazendo para o bazar do Natal. Bonita, né? E vai ficar bonito pronto. As
turcas já usam esta lã há muito tempo, é rapidinho enquanto se tece um
cachecol. Ah, eu adoro bolsas! Tenho de tudo em quanto é tamanho e cor, combinando
com os sapatos, claro. E os lenços, nem lhe falo: estive em Roma e comprei
muitos, para alegria dos ambulantes locais. Fui com as mulheres católicas da
Ordem do Coração de Jesus. Sim, mas de que mesmo lhe operaram? Pelo visto não
está com dor como eu, nem posso me mexer, ai. E minha filha recebeu benção do Papa,
já lhe disse?
Neste momento entra no quarto a enfermeira do plantão; o estado
da paciente da cama ao lado da janela rendeu intensos minutos, reticências e
várias interrogações. Não adiantou muita coisa, ela não pôde ser reanimada.
Estava morta há duas horas mais ou menos, poucos minutos após ter sido autorizada
a deixar o hospital.
Aqui, um áudio para este texto.
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