quarta-feira, 11 de maio de 2011

O Julgamento


Diante do juiz declaram-se não-assassinos, sim vítimas das circunstâncias. Confesso que era difícil acreditar. Eu, sentada ao fundo do tribunal, quieta, calada, óculos escuros, roupa discreta, encolhia-me naquele canto, sob uma capa, e torcia para ninguém me reconhecer. Eu só queria ver, eu tinha que presenciar. Acompanhara por muito tempo a novela e agora era cabal saber que rumo tomaria. Tentei ser imparcial, mas à medida em que iam sendo expostos provas e fatos, menos eu cria na inocência dos réus. Réu: essa palavra é muito dura, já me soa a condenação, se bem que agora de nada adiantam eufemismos. Eles, os acusados, estavam envolvidos em Sua morte, razão mais do que suficiente para eu ter que reconhecer que se chamam, de fato, réus. Morreriam sem reconhecer que a mataram, seu maior clamor: “Inocentes! Somos inocentes! Quem duvida de nós nunca soube o que é ser amigo!” Eu, no último banco, estrategicamente à porta, pronta para fugir a qualquer momento, retorci-me ao ouvir tão cínica declaração. Perguntava-me se deveras a culpa não havia sido minha, só minha, por desapego, distração, egoísmo talvez. De fato, sentia-me ainda ligada àqueles pobres diabos. Queria não tê-los jamais conhecido, condená-los ao limbo do eterno esquecimento. Por fraqueza ou seja lá o que não consigo expressar, desisti de tentar apagá-los do meu passado. Prova cabal disso era minha presença ali, naquele dia. O julgamento seguia; falou o advogado, depois o promotor. No rosto do juiz não se via desenhar nenhum traço, fosse de acolhimento ou desconsideração, e por isso era juiz. Por último, antes do júri retirar-se, falaram os réus. Não lhes foi permitido dizer muito. Aquela era sua chance final. Em resumo, o que disseram:

“Não fomos nós que a matamos; foram as circunstâncias. Muito a queríamos, queríamos preservá-la. Era sempre bom quando estávamos juntos. Depois, com a separação, tudo foi mudando, e cada vez mais rápido. De algum modo não conseguíamos mais nos manter unidos. Quem sabe pela falta de sintonia, pela enorme sobrecarga até... Pode ser que tenhamos errado fragilizando laços, encurtando ligações, o problema é que a vida segue seu rumo, sempre. Ela, pobre coitada, a quem nos acusam termos feito vítima, era quem não conseguia entender a tirania da variação no tempo, e suas conseqüências. Não fomos nós que a matamos, caros jurados. Ela morreu só, de desgosto talvez, uma morte perfeitamente natural.”

Ali no meu canto, encolhida, afoguei-me naquelas palavras, e a dor foi tanta que, num grito mudo, num desespero contido, senti a derradeira lufada de ar inflando-me a capa, e o corpo caindo, suavemente, para um dos lados, no banco frio, naquela última fila de tribunal.

Não me foi dado permanecer depois disso. Outros já me aguardavam. Eu devia — tinha! — que seguí-los. Não sei se os réus foram condenados. Só sei que ainda hoje arde em mim a chama da incerteza. Afinal, o que acabara com Sua força para viver? Fora mesmo morta ou deixara-se tombar? Depois que Ela se foi, até o dia do julgamento, virei sombra, e como Eurídice, no mundo das sombras permaneço, certa de que não virá jamais um Orfeu para de lá me tirar. Encontrei minha tumba etérea, em vão, pois um sol perpétuo de lembranças negras me impede descansar. Um dia, quem sabe, me seja dado voltar e finalmente descobrir o que aconteceu com nossa cara amiga, antes tão viva e enigmática, Amizade.


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Helena Frenzel
Publicado no Recanto das Letras em 11/05/2011
Código do texto: T2962620



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